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Em 2024, o Brasil teve o maior número de afastamentos por transtornos mentais em 10 anos. Foram 472 mil licenças concedidas, um aumento de aproximadamente 67% em relação ao ano anterior, segundo dados do Ministério de Previdência Social.
A saúde mental no ambiente de trabalho passou a ser uma questão estratégica para os negócios. No Brasil, a partir de 26 de maio, as empresas serão obrigadas a identificar riscos psicossociais e implementar medidas para gerenciar a saúde mental dos profissionais, garantindo que não adoeçam mentalmente devido à sobrecarga de trabalho, assédio moral ou sexual e ao estresse em ambientes tóxicos.

A exigência foi determinada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, conforme a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que aborda a saúde e a segurança no trabalho. “A saúde mental deixará de ser tratada como algo subjetivo e passará a ser uma responsabilidade formal das empresas”, afirma Ana Carolina Peuker, especialista em saúde mental no trabalho e membro do comitê consultivo no Movimento Mente Em Foco do Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas).
O que muda com a nova NR-1?
A principal mudança para as companhias com a atualização da norma será a obrigatoriedade de incluir a avaliação e o gerenciamento dos riscos psicossociais no Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR). “As empresas devem contar com assessoria especializada em saúde e medicina ocupacionais para que possam identificar os riscos psicossociais, bem como medidas para sua prevenção e mitigação”, explica Andrea Massei, especialista em Direito do Trabalho e sócia do Machado Meyer Advogados.
Tatiana Pimenta, CEO e cofundadora da plataforma de terapia online Vittude, destaca alguns passos que as empresas devem adotar no Programa de Gerenciamento de Risco:
- Identificar perigos psicossociais no ambiente de trabalho, como sobrecarga, falta de autonomia, jornadas prolongadas, assédio moral e insegurança no emprego;
- Avaliar esses riscos, classificando sua gravidade e probabilidade para definir prioridades de ação;
- Elaborar um plano de ação com prazos e medidas preventivas e corretivas;
- Monitorar continuamente esses riscos, revisando periodicamente as medidas implementadas.
A NR-1 exige que esse processo seja contínuo, com avaliações periódicas para garantir a eficácia das medidas adotadas. “As avaliações podem considerar fatores como volume de trabalho, pressão em razão de metas e riscos de assédio moral”, afirma Massei.
De benefício a regra
Desde a pandemia, o tema da saúde mental passou a fazer parte da agenda de grandes organizações, multinacionais e startups, mas agora entra em outro campo. “A atualização tira a saúde mental da esfera de ‘benefício’ e a posiciona como uma questão de compliance e gestão de riscos”, avalia Peuker.
Tatiana Pimenta, CEO e cofundadora da plataforma de terapia online Vittude, acompanha de perto a evolução das companhias brasileiras no cuidado com a saúde mental desde a fundação da sua empresa, em 2016. “Em muitas organizações, os profissionais não têm sequer acesso a plano de saúde ou remuneração que permita cuidar da própria saúde, o que contribui para o aumento alarmante de afastamentos por transtornos mentais”, afirma.
Os números refletem esse cenário. Segundo um levantamento da plataforma Zenklub, o bem-estar dos profissionais brasileiros no trabalho está abaixo do nível mínimo considerado adequado. Em 2024, as denúncias corporativas por meio de canais internos cresceram 28% no Brasil, com assédio moral e discriminação liderando os casos, aponta uma pesquisa da KPMG. “A norma traz um impulso importante para que empresas que hoje não fazem o mínimo pelo bem-estar dos funcionários sejam pressionadas a agir”, diz Pimenta.
Entre os afastamentos recordes por questões de saúde mental em 2024, as mulheres foram as principais afetadas. Dados do Ministério da Previdência Social mostram que elas representaram 63,8% das 472 mil licenças concedidas por transtornos mentais no ano. “As mulheres acumulam funções e ainda enfrentam desigualdade no mercado, o que gera estresse, ansiedade e burnout”, afirma Peuker. “Além disso, elas procuram mais ajuda psicológica, enquanto muitos homens evitam por medo de parecerem ‘fracos’ – um estigma que ainda pesa.”
“Wellbeing washing”
Um estudo realizado pelo McKinsey Health Institute constatou que os empregadores avaliam a saúde mental de seus funcionários de forma 22% mais favorável do que os próprios empregados. “Hoje, há mais conscientização sobre o tema da saúde mental, mas ainda existe um hiato entre discurso e prática nas empresas”, observa Peuker.
Esse descompasso ganhou o nome de “wellbeing washing” – semelhante ao “greenwashing”, ocorre quando uma empresa foca mais em parecer que se importa com o bem-estar dos funcionários do que em tomar medidas concretas para realmente cuidar deles. “Medidas são adotadas somente quando o problema já se tornou visível, seja por alta rotatividade, absenteísmo ou queda na produtividade.”
Riscos para empresas que não seguirem a NR-1
Uma vez que a atualização da NR-1 entrar em vigência, as empresas que não implementarem as medidas exigidas estarão sujeitas a penalidades. “O não cumprimento dessa obrigação pode gerar autuações e multas, além de consequências mais severas, como interdições ou Termos de Ajuste de Conduta”, diz Tatiana Pimenta.
A advogada Andrea Massei acrescenta que o descumprimento da NR-1 pode resultar em penalidades adicionais, incluindo processos administrativos, ações civis públicas movidas pelo Ministério Público do Trabalho e ações individuais de funcionários com doenças relacionadas à função, o que pode levar a indenizações.
Caso um funcionário seja diagnosticado com alguma doença mental ocasionada pelo trabalho, ele pode recorrer a algumas medidas. “Esse colaborador poderá fazer jus à eventual estabilidade provisória no emprego, além de ingressar com ação individual com pedido de indenização por danos morais e materiais para responsabilização do empregador”, afirma Massei.
O que esperar da saúde mental dos profissionais brasileiros?
Em maio, é esperado que as empresas já tenham implementado avaliações psicossociais estruturadas, ajustado as cargas de trabalho, revisado práticas de gestão e dado maior atenção à cultura organizacional. “Os primeiros impactos serão sentidos a médio prazo, especialmente nas empresas que adotarem um modelo de gestão mais estruturado já nos primeiros meses”, afirma Ana Carolina Peuker, especialista em saúde mental no trabalho. “Embora a NR-1 tenha potencial para acelerar mudanças positivas, é provável que a situação ainda piore antes de melhorar”, diz Tatiana Pimenta, da Vittude.
Os efeitos mais amplos, como redução nos afastamentos e melhora na produtividade, podem levar de dois a cinco anos para se consolidarem. “Muitas empresas vão fazer de tudo para dizer que cuidam da saúde mental, mas poucas vão levar a sério”, diz Peuker.
Para as especialistas, o impacto da atualização da norma na saúde mental dos brasileiros dependerá do grau de compromisso das organizações e da eficácia na fiscalização. “As empresas precisam transformar a exigência legal em uma oportunidade genuína de cuidado com as pessoas”, afirma Pimenta.