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“Meu pai nunca me deu um beijo.”
Naquele raro instante de lucidez, ele não falou do seu assunto favorito: TRABALHO.
Ele escolheu falar sobre o que lhe faltou na vida. O afeto do meu avô Jorge.
Meu pai, Osvaldo, 81 anos, foi diagnosticado com Parkinson e corpos de Lewy, uma doença que rouba a memória, causa alucinações e sem piedade alguma aniquila o corpo do seu refém.
Para um economista apaixonado por números, leitor voraz e mestre em negociações, não conseguir mais ler uma bula de remédio é de uma crueldade sem medida.
Sim, envelhecer é o ciclo natural da vida. Se tivermos sorte, chegaremos lá. Mas envelhecer não é um substantivo. É verbo. Movimento constante que começa no primeiro choro.
E é um milagre pensar que um menino abandonado pela mãe, alcoólatra, e pelo pai ausente e violento, fugindo de Assis para São Paulo aos 14 anos, sem sapatos, tenha vivido tanto.
O que me surpreende agora é vê-lo deixando para trás quem foi. Aquele homem incansável, sedente por conhecimento, que trabalhava de segunda a sábado, das 7h às 20h, que acreditava que ser um bom pai era sustentar a casa e construir um patrimônio para a família, já não está mais entre nós.
Durante anos, a minha maior ambição profissional era ganhar uma promoção ou um aumento para ligar e contar para ele. Era o meu momento de glória. Isso o enchia de orgulho e aquilo era afeto em forma bruta para mim. Para o meu pai, sucesso sempre esteve associado ao dinheiro. Com sua origem tão humilde, não é difícil entender o porquê. Mas, por trás de tanta ambição, havia um homem generoso, que compartilhava o que conquistou com quem tinha menos.
Perguntei como ele queria ser lembrado. Achei que ele falaria da loja de móveis que abriu em 1977, que depois de alguns anos virou plural. Lojas essas que foram vendidas para um jovem absurdamente talentoso, que as transformou numa rede de lojas espalhada por São Paulo.
Mas ele desviou: “Tá vendo aquele barco ali passando?”
É assim. Os neurônios se perdem, as conexões se rompem, e, com o tempo, até a linguagem se dissolve. Nos dias bons, ele ainda arrisca falar sobre como “O Capital” de Karl Marx é atual, sobre o camping de Itatiaia, sobre a maratona mais difícil que ele já correu em Florianópolis. Nos dias bons, a cama amanhece seca, ele não cai no caminho até o banheiro, consegue dar uns passinhos, usar a colher nas refeições e lembrar-se que sou sua filha.
Quando agradecemos pelas pequenas coisas, descobrimos que elas nunca foram pequenas. Proteger, no latim protegere, é cobrir com o corpo, a alma e o tempo para que o outro atravesse a vida em segurança — até o dia de trocar de lugar.
Meu pai nunca foi afetuoso, mas foi ético, íntegro, fiel aos seus princípios. Este texto não é sobre pais ausentes ou doentes. É sobre nós, saudáveis, e o que fazemos com o tempo que temos. É sobre a coragem de ser feliz apesar de tudo. Sobre usarmos o nosso tempo com sabedoria.
Escrevo para honrar a história do meu pai, e de tantos pais e mães de amigos que estão passando pela mesma situação.
Segundo o Ministério da Saúde, no Brasil, cerca de 2 milhões de pessoas com 60 anos ou mais vivem com algum tipo de demência, incluindo Alzheimer e outras formas da doença.
Saramago dizia: “Nossa única defesa contra a morte é o amor.” E eu aprendi a não subestimar as voltas bonitas que a vida dá.
Meu pai trocava comida por livros. Minha filha, Manuela, de 16 anos, publicará seu primeiro livro, em português e inglês, sobre perdas, lutos, encontros e o poder da música nas nossas histórias.
E ainda há quem insista que a vida precisa ser entendida. Alguns se vão, outros chegam.
Já temi muito a morte. Hoje sei que a beleza da vida não está em segurar. Está em estar. Sentir. Tudo. Até a dor, porque ela é prova de que ainda estamos vivos.
A maior herança que meu pai deixará não cabe em cofres nem escrituras: são os valores humanos. Eles não se perdem, não podem ser roubados e nem se apagam, porque vivem em nós.
Quem herda tamanha fortuna entende a responsabilidade de passar esses valores adiante e, preferencialmente, acompanhados de muito afeto.
P.S.: Cuide de quem cuida. Muitas vezes esquecemos daqueles que dedicam suas vidas a aliviar a dor dos outros.
Luciana Rodrigues é conselheira do board da Junior Achievement, membro do conselho da Iniciativa Empresarial pela Igualdade e do comitê estratégico de presidentes da Amcham. Também é aluna de pós-graduação em neurociências e comportamento.
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