Neurociência da vida cotidiana (18): Migrânea / Enxaqueca 

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José Aparecido Da Silva 

(Esta crônica é dedicada ao Prof. Dr. José Geraldo Speciali, um especial clínico e pesquisador 

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das Cefaléias, Migrâneas, Enxaquecas, Dores de Cabeça) 

Denominada cientificamente como migrânea, a dor de cabeça comum tem uma prevalência média de 20,2% nas mulheres e de 9,4% nos homens. É a terceira desordem mais prevalente, e a sexta causa mais elevada de incapacidade ao redor do mundo. A idade em que a mesma ocorre é antes dos 40 anos em 90% dos casos. É comumente considerada como um distúrbio de dor de cabeça intensa e episódica, mas isso subestima tanto sua complexidade fisiopatológica quanto seu impacto humano. Tipicamente, trata-se de um episódio recorrente, unilateral, pulsante, acompanhado de intensidade de dor moderada a severa. Ataques de enxaqueca são muitas vezes incapacitantes e afetam principalmente as pessoas no seu trabalho e na criação dos filhos. A enxaqueca crônica – enxaqueca que ocorre mais de 15 dias por mês – afeta 2% da população mundial. Os custos econômicos da enxaqueca, impulsionados principalmente pela enxaqueca crônica, variam entre US$ 20 e US$ 30 bilhões por ano nos EUA. Entretanto, os verdadeiros custos sociais desta doença estigmatizada e mal compreendida são difíceis de estimar. 

De acordo com Brennan e Pietrobon (2018, A systems neuroscience approach to migraine; Neuron,  97(5): 1004–1021), duas características da enxaqueca a tornam um problema de neurociência sistêmica muito interessante. Primeiro, a crise de enxaqueca não é apenas um estado de dor anatomicamente específico, mas também – pelo menos fenotipicamente – é um distúrbio paroxístico de ganho pan-sensorial. Em segundo lugar, a transição de enxaqueca aguda a crônica parece representar uma plasticidade disfuncional e multi-localizada de circuitos sensoriais, autônomos e afetivos. Para compreender o ataque de enxaqueca do ponto de vista da neurociência sistêmica, precisamos entender como uma rede sensorial e autônoma pode mudar, em poucos minutos, de um estado de equilíbrio relativo àquele em que há dor espontânea e amplificação de percepções de múltiplos sentidos. Também precisamos entender como as mudanças sensoriais que ocorrem em numa crise de enxaqueca tornam-se uma experiência quase constante na doença crônica. O ataque de enxaqueca envolve alterações em múltiplas percepções sensoriais. Dores de cabeça e pescoço são as características prototípicas, mas os ataques de enxaqueca são quase sempre acompanhados por alguma combinação de fotofobia, fonofobia e/ou alodinia (percepção de luz, som e toque como dolorosos, respectivamente). Osmofobia – uma sensibilidade olfativa intensificada, muitas vezes aversiva, é outra característica frequente. Finalmente, a náusea – um efeito aversivo- uma viscerosensação – afeta a maioria dos pacientes com enxaqueca durante um ataque.  

De outro lado, a disfunção cognitiva tem recentemente chamado a atenção dos estudiosos como um problema significativo entre os sofredores da migrânea. Variados estudos clínicos (Vuralli et al, The Journal of Headache and Pain, 2018; Cai et al, Pain Research and Measurement, 2019) mostraram pobre desempenho cognitivo durante ataques de migrânea, embora dados entre episódios dos mesmos sejam conflitantes. Os domínios cognitivos específicos estudados são velocidade de processamento de informação, atenção sustentada, funções executivas, memória verbal e não verbal e habilidades verbais. Em geral, os estudos baseados em população revelam pequenas deteriorações cognitivas entre pacientes com migrânea e grupos de participantes sem migrânea. Do mesmo modo, estudos envolvendo imageamento neurofisiológico e estudos farmacológicos suportam sintomas clínicos de incapacidade cognitiva em pessoa com migrânea. Entretanto, medicações preventivas e desordens comórbidas, tais como, depressão e ansiedade, podem impactar a função cognitiva, mas não podem completamente explicar a incapacidade cognitiva que ocorre nos pacientes migrâneos.  Outros estudos (Gill-Gouveia & Martins, Current Pain and Headache Reports, 2019; Karceski, Neurology, 2007) destacam que a disfunção cognitiva é uma manifestação frequente nos ataques migrâneos, podendo serem específicas desta desordem. Além disso, o risco de declínio cognitivo aumenta em pacientes com migrânea crônica bem como, o uso contínuo de drogas antiinflamatórias não tem influência nos desempenhos cognitivos entre os sofredores de migrânea crônica. 

Entre os diferentes estudos que apontaram efeitos da migrânea crônica sobre o desempenho cognitivo, importa destacar aquele realizado por Sharaf et al (Egyptian Journal of Psychiatry, 2018), que comparou diretamente o efeito da migrânea crônica no QI. Para tanto, as funções cognitivas dos pacientes e do grupo controle foram avaliadas a partir de uma escala de inteligência conhecida como WAIS e os sujeitos de ambos os grupos foram estudantes da Universidade de Alexandria, sendo 20 pacientes diagnosticados com migrânea (Grupo 1), 20 com migrânea crônica (Grupo 2) e um grupo controle, sem condição clínica (Grupo 3).  Os resultados mostraram um QI médio de 106,65 para o Grupo 2, outro de 106,9 para o Grupo 1 e 111,35 para o Grupo 3, Não houve diferença significativa entre os escores de QI para os pacientes com migrânea crônica e migrânea recentemente diagnosticada. Entretanto, os escores de QI, tanto para o Grupo 1 quanto para o Grupo 2, foram significativamente menores que o escore médio dos participantes do grupo sem migrânea, ou seja, o Grupo 3. Considerando todas as análises desse estudo, em particular as comparações efetuadas entre os três grupos nos diferentes subtestes da escala de inteligência WAIS, os autores concluíram que os pacientes com migrânea têm escores piores do que os pacientes do grupo controle no QI total. Entretanto, deve-se observar que todos os escores de QI estão ainda dentro dos limites normais. Ademais, os pacientes migrâneos recentemente diagnosticados mostraram um desempenho pior nos escores de memória operacional do que os pacientes com migrânea crônica. Neste mesmo teste nenhuma diferença esteve presente entre pacientes com migrânea crônica e aqueles do grupo controle. Isto pode denotar que adaptação pode melhorar a memória de trabalho de pacientes com migrânea ao longo do tempo. 

O que podemos concluir de todos os estudos é que a relação entre migrânea e cognição é complexa. Sintomas cognitivos são parte da experiência subjetiva dos ataques migrâneos, contribuindo para a incapacidade relacionada ao ataque, sendo provável de interferir com desempenho no trabalho, na vida familiar e social e também com o autocontrole dos episódios migrâneos. 

 Professor Visitante da UnB-DF* 

   



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